A paciência do conceito – ou por que a filosofia parece tão difícil

Trabalhar conceitos nunca é uma tarefa isenta de complicações. Isso porque eles são transmitidos à posteridade através de palavras, o que os coloca no limite da linguagem. Um conceito nunca é dito de uma maneira por acaso. O fato de eu ter usado a palavra “trabalhar” para começar este texto, por exemplo, mostra talvez mais do que eu própria tenha consciência, já que foi a palavra mais rápida de encontrar em meu arcabouço conceitual para exprimir a relação que estabeleço com os conceitos, o que evidencia – para dizer o mínimo – o ambiente e o período da história em que vivo, ao qual estou familiarizada.

Os conceitos, assim, podem ter mais profundidade e mais significado do que a própria voz que os transmite conhece. Para além de questões semânticas, eles são responsáveis por ilustrar as ideias ou percepções que vislumbro de modo a torná-las “capturáveis” para outros indivíduos dotados das mesmas capacidades – em maior ou menor grau – com um arcabouço que pode ou não conter os mesmos conceitos. Por isso, para tornar possível a inteligibilidade entre o que é apresentado e o que é compreendido, são estabelecidos significados comuns que podem mudar ao longo dos anos, de acordo com a história de uma sociedade e o seu desenvolvimento. 

Mas a filosofia não trabalha com conceitos tal como eles são apresentados no dicionário, por exemplo. Por isso, a sua compreensão pode ser lida com demasiado exaustiva, ou ainda “impossível”. 

A filosofia está no limite da linguagem tal como a conhecemos. Não por acaso existe um grande acervo de trabalhos acerca da filosofia da linguagem – como os de Wittgenstein, Fredge, Saussure, Husserl, Carnap, entre outros, apenas para nomear alguns e sem ordem temporal. Cada um possui sua devida importância e contribuição para a história da filosofia. 

Esse limite, aliado a dificuldade de encontrar um ambiente propício à contemplação na atualidade, em meio a diversas questões materiais que impossibilitam, muitas vezes, a imersão em assuntos filosóficos, pode tornar a tarefa algo pesado, massante e complexo. De fato, como disse no começo do texto, “trabalhar” conceitos não é uma das tarefas mais fáceis. Mas por que insisto em usar tal palavra? 

A paciência do conceito: o exercício da filosofia no ritmo capitalista

A filosofia segue somente suas próprias regras. Não há, assim, um limite temporal pré-estabelecido para a compreensão de um conceito. Por estar no limite da linguagem, ela engloba em uma só palavra um mundo de concepções distintas, que podem ou não se inter-relacionar, se sobrepor, se reforçar ou se anular. Assim, não se trata de ler algo e absorver o que foi lido no primeiro momento, a partir de uma leitura corrida, sem demarcações e sem reflexão. O conceito filosófico é recuperado a cada pensamento, é trazido à mente diversas vezes e contraposto a diversos cenários. Pensar um conceito é, quase sempre, confrontá-lo, colocá-lo à prova. 

O tempo capitalista não está pronto para lidar com a complexidade dos conceitos filosóficos. Isso porque ele é um tempo que só sabe falar a linguagem do consumo. Ao ler um texto sob o tempo do capitalismo, eu o devoro – a expressão “devorar livros” é usada para designar leitores ávidos -, consumo suas palavras sem pausa, ansiando sempre por mais. O texto restante me angustia, me faz falta, me leva a crer que preciso prosseguir rumo ao fim. Enquanto não termino, há inquietação e, quando termino, há a sensação de dever cumprido – que pode ou não ser acompanhada pela angústia de terminar um texto cuja história estava me entretendo, mas o simples entretenimento não me faz querer prosseguir mais lentamente. Pelo contrário, prossigo para a próxima obra.

Essa não é a leitura adequada para a filosofia, que exige pausas dedicadas à observação atenta dos conceitos. No entanto, ler um texto demoradamente não é garantia por si só de que sua apreensão acontecerá de maneira satisfatória. Outra característica que difere o tempo filosófico do tempo produtivo (capitalista) é a paciência do conceito. 

O que é a paciência do conceito? Ela consiste em afastar-se de uma perspectiva de dominação sobre o próprio conceito: é abrir espaço a sua autorrealização, permitir que ele seja confrontado com acontecimentos e outros conceitos e de maneira hegeliana, atualizado quando trazido ao presente sob sua perspectiva histórica. A única postura ativa do sujeito é, portanto, a de permitir essa autorrealização ao propor o confronto, ao colocar a própria razão à disposição para a exibição dos contrários. Esse processo não pode ser realizado de modo abrupto, corrido, rápido. Ele não é forçado. Não se trata, portanto, de uma tarefa a ser cumprida e riscada de uma lista de afazeres.

O que quero dizer é: o “trabalho” do conceito é absolutamente diferente da atividade laboral tal como a conhecemos. O conceito não se encaixa em um tempo pré-estabelecido: ele o ultrapassa e se faz presente em diferentes situações quando menos se espera. Seu tempo de compreensão não se submete a uma agenda. Ainda que, de fato, seja possível assimilar linhas interpretativas para uma prova ou uma dissertação, a compreensão “completa” de um conceito só se realiza quando se deixa de consumir a leitura e se passa a contemplá-la. Por isso o capitalismo é inimigo da filosofia. Por isso ele tenta, a todo o custo e com discursos vagos, afastá-la do interesse comum. Adentrar o campo do filosófico significa desaprender o tempo do capital, da produção, do lucro. É compreender que o raciocínio vai além do barulho do relógio.

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